Na Ponta do Lápis

Os livros nos oferecem janelas para diferentes mundos, épocas, culturas e sentimentos. Ao lermos trechos de obras diversas, temos a oportunidade de conhecer diferentes estilos de escrita, autores e gêneros literários, mesmo sem precisar ler a obra completa. Ao explorarmos trechos de livros diversos, queremos incentivar a leitura, desenvolver o senso crítico e mostrar que a literatura está cheia de vozes, estilos e mensagens diferentes — e todas têm algo a nos ensinar. Cada trecho lido é um convite para continuar. A literatura é infinita em possibilidades, e conhecer partes de obras variadas nos ajuda a descobrir nossos gostos e ampliar nosso olhar sobre o mundo.

A Prova

ESTATÍSTICAS. Números. A civilização da tecnologia.

Então alguns cientistas – monges resolveram demonstrar que existe alguma coisa imponderável que escapa a esse materialismo que está fazendo o homem o mais infeliz dos seres: num laboratório foram plantadas três sementes em condições e circunstâncias absolutamente iguais. Igual a terra, a iluminação e a água regada nos três vasos onde foram colocadas as sementes trigêmeas.

Uma única diferença nesse tratamento: quando o cientista-monge regava a terra do primeiro vaso, dizia em voz alta palavras de fervor, esperança. Palavras de amor: “Quero que você cresça bela e forte porque confio em você, porque neste instante mesmo estou lhe dando minha bênção do fundo do coração”... etc...etc.

Diante do segundo vaso, em silêncio e automaticamente, ele deixava cair a água. Mas quando chegava a vez do terceiro vaso, ele só tinha palavras de hostilidade, desafeto: “Você será uma plantinha anêmica, feia, não acredito na sua sobrevivência, está me ouvindo? Não gosto de você!”

Ela ouviu. As outras também ouviram e sentiram a diferença de tratamento: a semente bem-amada resultou numa planta vigorosa e cheia de graça. A semente regada com indiferença cresceu indiferente, sem a exuberância da primeira. Quanto à semente rejeitada, esta virou uma plantinha obscura, de caule entortado e folhas tímidas, a cabeça pendida para o chão.

(LYGIA FAGUNDES TELLES  A Disciplina do Amor, Ed. Nova Fronteira)

Dom Casmurro

Dom Casmurro é uma obra-prima da literatura brasileira justamente porque desafia o leitor. Não entrega verdades, mas questionamentos. É um livro sobre o ciúme, mas também sobre a natureza da narrativa e a complexidade dos sentimentos humanos. Mais de um século depois, seguimos tentando responder: Capitu traiu? — e talvez essa pergunta nunca tenha uma resposta definitiva. E é isso que torna a obra tão poderosa. A ironia, os jogos de linguagem, os diálogos internos e as quebras na narrativa são marcas do estilo de Machado de Assis. Ele cria uma literatura sofisticada, onde as entrelinhas são mais importantes que os fatos narrados.

“Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de um homem calado e metido consigo.” (Cap. I – Do Título)

“Olhos de cigana oblíqua e dissimulada... Traziam não sei quê de misterioso e enérgico, uma feição que não se podia dizer qual era.” (Cap. XXXIII – Os Olhos de Capitu)

"Voltei-me para ela; Capitu tinha os olhos no chão. Ergueu-os logo, devagar, e ficamos a olhar um para o outro… Confissão de crianças, tu valias bem duas ou três páginas, mas quero ser poupado. Em verdade, não falamos nada; o muro falou por nós. Não nos movemos, as mãos é que se estenderam pouco a pouco, todas quatro, pegando-se, apertando-se, fundindo-se. Não marquei a hora exata daquele gesto. Devia tê-la marcado; sinto a falta de uma nota escrita naquela mesma noite, e que eu poria aqui com os erros de ortografia que trouxesse, mas não traria nenhum, tal era a diferença entre o estudante e o adolescente. Conhecia as regras do escrever, sem suspeitar as do amar; tinha orgias de latim e era virgem de mulheres. Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros… Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma das faces à Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálice, os lábios a patena. Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende, e é a língua católica dos homens. Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo. Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica. Os olhos continuaram a dizer coisas infinitas, as palavras de boca é que nem tentavam sair, tornavam ao coração caladas como vinham…" (Capítulo XIV / A Inscrição)

Solidão Criativa


"A imagem da felicidade na mídia é sempre representada por grupos. No mínimo em duplas, se o clima for de romance. Turmas sorridentes que conversam, se movimentam e dançam são cenas alegres, desejáveis, em contraponto ao retrato de um indivíduo solitário, seja lá o que estiver fazendo. O isolamento não é popular na nossa cultura. E, desde que, há algumas décadas, definiu-se que o ser humano era, além de mais feliz, mais criativo e produtivo em grupos, estudar e trabalhar virou atividade coletiva. O brainstorming, a chuva de ideias ou toró de palpites, tornou-se o modelo de inspiração corporativa do século 20 para solucionar, inovar, criar e chegar ao melhor resultado. Os escritórios, estúdios, agências, redações derrubaram suas paredes, e até mesmo os cubículos acanhados dos anos 1980 se desmontaram em espaços livres, onde todos se escutam, se veem e se comunicam com facilidade.

O mundo estabeleceu esse modelo bem antes de a internet chegar e ser de fato o lugar sem paredes para ampliar nosso potencial criativo por meio do contato virtual com milhares de outros cérebros. No multiconectado século XXI, no entanto, o que vemos em estudos recentes é: estar só, trabalhar em silêncio e com privacidade pode ser melhor, mais criativo e eficiente do que em grupo. A consultora americana Susan Cain, autora do livro Quiet, The Power of Introverts in a World That Can't Stop Talking (Quieto, o poder da introversão em um mundo que não consegue parar de falar), defende a tese de que é hora de valorizar a introversão e promover um equilíbrio de poder entre aqueles que falam muito e rapidamente e os que se sentam no fundo e pensam. Esse tipo de profissional, tachado de tímido e pouco valorizado em ambientes que exigem que as pessoas se coloquem e manqueteiem suas ideias antes que alguém o faça, é o que normalmente não é ouvido durante as reuniões de brainstorming.

Estudos no campo da neurociência analisam a eficiência da reunião criativa e constatam que, além de intimidante para os introvertidos, ela gera o efeito coletivo de mimetização. Quando pensamos diferente do grupo, diz o neurocientista Gregory Berns, ativamos em nosso cérebro a amígdala, órgão associado ao medo da rejeição. Permanecemos, por pavor de sermos contestados, presos à ideia do grupo, que nem sempre é a melhor. Outros estudiosos da neurociência, Nicholas Kohn e Steven Smith, alertam para um efeito cognitivo dos debates em grupo, onde tendemos a nos fixar em uma ideia e, a partir daí, bloquear o raciocínio para outras.

O terapeuta organizacional Adrian Furham defende que trabalhar em brainstorming é uma insanidade e que, se a empresa tiver pessoas talentosas e motivadas, elas devem ser encorajadas a trabalhar sozinhas, em ambientes em que a criatividade e a eficiência sejam prioridades.

A maior parte dos artistas, dos nerds, cientistas - enfim, dos grandes criadores - trabalha e pensa melhor isolada. Segundo o parceiro de Steve Jobs, Steve Wosniak, os criativos vivem imersos na própria cabeça. 'Trabalhe sozinho', aconselha o gênio por trás do gênio da Apple." 

Particularmente, defendo a ideia de que as pessoas possam se expressar livremente. E aí também entra a possibilidade de se trabalhar sozinho, se a pessoa for mais produtiva assim. Alterno momentos em que estou imersa na minha própria cabeça e momentos em que quero trocar minhas conclusões com outro colega.

É alentador saber que aqueles que gostam de trabalhar sozinhos - que apreciam a solitude - estão sendo vistos de forma mais positiva...

Cynthia de Almeida – jornalista

Outubro 2012