Poesia: o autor sem censuras

A poesia é assim: imortal, sempiterna. Trama palavras justas na singularidade universal de vocábulos enxutos, que expri­mem quase todos os sentimentos. Suas meta­morfoses sobreviveram aos testes do tempo, adaptaram-se, forjaram-se nupérrimas na contempora­neidade das épocas. Nasceram, alegadamente, dos contos sumérios no Épico de Gilgamesh; desfrutaram aventu­ras gregas e troianas nas odisseias de Ho­mero. Cederam penitências ao purgatório de Dante, tornaram-se feudais nos coloquia­lismos medievais de Chaucer. Renderam-se aos so­netos de Shakespeare e o Paraíso Perdido de Milton, mais tarde, relen­tando-se nos ro­mances vitorianos de Allan Poe e Walt Whitman. Não obstantes, açu­caram-se nas linhas de Neruda, puseram-se melancólicas em Cecilia Meirelles e modernizaram-se em Drummond ‒ sem pre­ocupações métricas, sem pedantismos e erudições.

Insolvência

(para Nadja Abdo)


Em espaços cobertos de poeira
e o corpo mesclado em nuvens
por estrada vai-me a ilusão certeira
e, por esteira, minh'alma que
além de mim vaga algures...

Passo a passo sigo sonolento
marcha frágil de vento,
mar e terra em movimento.

No compasso do amor que nunca tive
me refaço entre o pôr de um sol cadente
e o silêncio que em meu peito
eternamente vive.

Extraído do livro "Fragatas e Silêncios" Rogério Sola Santiago

No Meio do Caminho

No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

Carlos Drummond de Andrade - 1928

Livraria

 

Olhai os Lírios do Campo sem Macunaíma.

Viva teus Cem Anos de Solidão com Razão e Sensibilidade.

Sejas Dom Casmurro professado de teu Dom Quixote Cervantes.

Se, Em Busca do Tempo Perdido encontrares Guerra e Paz,

assista Os Miseráveis virarem As Memórias Póstumas de Brás Cubas,

talvez assim O Pequeno Principe não temerá nem Drácula nem Frankenstein,

quanto menos Crime e Castigo.

 

Busca teu Profeta Gibran nos Morros dos Ventos Uivantes,

talvez lá Ulysses te dirá que a Odisseia teve Encontro Marcado em 1984,

sem temer as Vidas Secas.

Perceberá, decerto, Que O Sol é para Todos.

E, por fim, se apaixonastes como Romeu e Julieta,

busca tua Hora da Estrela em Gabriela Cravo e Canela.

Lembra-te que somos todos filhos dessa Divina Comédia,

e que lá não há Incidente em Antares,

mas, sim, Os Sertões do Meu Pé de Laranja Lima

Extraído do livro "Por que Será?" Fernando Abdo

Anseio de liberdade

 

De todas as pulsões em mim, 

liberdade é palavra de ordem

só liberta tenho a dimensão da vida,

mesmo que para tanto 

o preço a pagar seja solitude

 

O grande poeta já dizia: 

“o carvalho e o cipreste não crescem

à sombra um do outro”,

o que cerceia o movimento

compromete o crescimento

 

“Vá ser livre na vida”

Extraído do livro "Ainda Podemos" Nadja Abdo

Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
Assim calmo, assim triste, assim magro,
Nem estes olhos tão vazios,
Nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
Tão paradas e frias e mortas;
Eu não tinha este coração
Que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?

Cecília Meirelles - 1939

Amavisse

Como se te perdesse, assim te quero.
Como se não te visse (favas douradas
Sob um amarelo) assim te apreendo brusco
Inamovível, e te respiro inteiro

Um arco-íris de ar em águas profundas.

Como se tudo o mais me permitisses,
A mim me fotografo nuns portões de ferro
Ocres, altos, e eu mesma diluída e mínima
No dissoluto de toda despedida.

Como se te perdesse nos trens, nas estações
Ou contornando um círculo de águas
Removente ave, assim te somo a mim:
De redes e de anseios inundada.

Hilda Hist - 1989