Resenhas Literárias

A resenha literária é um texto crítico e analítico que tem como objetivo apresentar, descrever e avaliar uma obra literária — como um romance, conto, crônica ou poesia. Ela combina elementos informativos e opinativos, permitindo ao leitor conhecer o conteúdo e as principais características da obra, ao mesmo tempo em que oferece uma interpretação ou julgamento sobre sua qualidade e relevância.

A Impermanência da Vida

Quando decidimos publicar este conjunto de contos, cuidamos de escolher entre nossos escritos aqueles que tivessem relação com nosso objetivo maior a ser abordado: a impermanência da vida. A partir dessa perspectiva, entendemos que o melhor caminho seria tomar como referência o passado se projetando no presente e futuro. Os nossos ascendentes e descendentes aparecem como desdobramentos mais próximos nesse enfoque, embora outras personagens fictícias também tenham lugar no conjunto da obra. Num misto de realidade e ficção — pois nem tudo é do nosso inteiro conhecimento — trouxemos à memória o que vivenciamos e o que imaginamos. O fato de sermos irmãos contribuiu no entrelaçamento das memórias familiares, mas ficou independente nas diferentes visões que tivemos sobre o mundo, naturalmente decorrentes da diferença de idade e das experiências pessoais. Os nomes das personagens foram alterados ou omitidos no intuito de reservar-lhes o direito à privacidade e em respeito à memória. O cuidado com o passado parece-nos de extrema relevância, para que não se perca de vista as vicissitudes que cada momento histórico impõe aos seres humanos, levando-os a caminhos e desfechos imprevisíveis. Nos momentos em que falamos em primeira pessoa, as impressões são descritas de maneira bastante intimista, embora saibamos que sempre haverá um lugar comum em todos nós no tocante às percepções. Sobre as poesias, houve independência temática quanto à ancestralidade e liberdade poética na expressão de sentimentos pessoais. Entretanto, ao selecioná-las para esta coletânea, buscamos manter a abordagem da impermanência da vida.

Dos autores, Nadja Abdo e Nagib Abdo

O real na literatura

As obras de Conceição Evaristo trazem a realidade para a literatura, valendo-se de abordagens como discriminação social, de gênero e de classe, desdobrados em dramas correlatos, como o fez no romance Ponciá Venâncio, publicado em 2003.  

Em Olhos d’agua, de 2014, a autora reúne contos que se entrelaçam em temática e cenários, ora expondo desigualdades sociais e preconceitos raciais, ora enaltecendo a resiliência das personagens. Embora as narrativas apresentem experiências particulares, a unicidade dos dramas acontece por similaridade das precárias condições de vida nas favelas. Ainda assim, a autora encontra espaço para a poesia, a exaltação da vida e a sublimação da morte. 

“A gente combinamos de não morrer”. 

Em meio às tragédias diárias, há lugar reservado para fantasias, brincadeiras e prazeres. As construções gramaticais singelas permitem que a dinâmica textual ganhe celeridade, compatível com as urgências vividas. 

Um aspecto relevante diz respeito à escolha cuidadosa de nomes e codinomes, que dão personalidade ímpar a cada criatura, embora o destino lhes seja muito semelhante. Percebe-se, também, o cuidado com os títulos, todos sugestivos e pertinentes a cada enredo. 

O conto de abertura, de mesmo título da obra, destaca-se pela simbologia de olhos sempre marejados a expressar intimidade com o sofrimento constante. Ao indagar sobre a cor dos olhos da mãe, Conceição coloca o leitor diante de uma mulher sofrida a verter lágrimas silenciosas, ao que ela chama de “águas de Mamãe Oxum”.

“Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas, que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de OLHOS D’AGUA.”

Por todos os contos estão presentes as marcas da afrodescendência discriminada, vilipendiada, fragilizada pelas desigualdades e pelo racismo estrutural ainda notórios na sociedade. A autora aborda a realidade com conhecimento de causa e coragem para expor a ferida da discriminação. Contudo, não se trata de uma obra de protesto, mas, sim, de reflexão sobre o passado, presente e futuro, embalada de esperança. 

Nadja Abdo - escritora, critica literária, presidente da Academia Mineira de Escritores

Drácula - Bram Stoker

“Ouça-os — os filhos da noite. Que música eles fazem!”

Publicada em 1897, a obra Drácula, de Bram Stoker, é um dos marcos fundadores da literatura de horror gótica e o grande responsável por cristalizar o imaginário popular sobre vampiros. Muito além de uma simples narrativa de terror, o livro mistura elementos de aventura, suspense, romance, ciência e religião, enquanto revela os medos e tensões da sociedade vitoriana.

A história é contada em formato epistolar — ou seja, por meio de diários, cartas, telegramas e recortes de jornais —, o que confere à narrativa um caráter quase documental e psicológico. Cada personagem oferece sua própria perspectiva dos acontecimentos, o que dá profundidade emocional ao drama.

O romance tem início com Jonathan Harker, um jovem advogado inglês, que viaja à Transilvânia para tratar de negócios com o enigmático conde Drácula. Ao chegar ao castelo, percebe que está em uma prisão e que seu anfitrião não é um homem comum:

“O castelo é uma prisão, e eu sou seu prisioneiro.”

O conde parte então para a Inglaterra, levando consigo um mal silencioso e contagioso. Enquanto ele se infiltra em Londres e atrai suas vítimas, os personagens que o enfrentam — como o professor Van Helsing, o Dr. Seward, Mina Harker e outros — precisam unir razão científica, fé religiosa e coragem para combater esse antigo mal.

“Ela não está morta. Ela é uma coisa que vive à noite.”

O estilo de Stoker combina descrições densas e atmosféricas com momentos de tensão crescente. A figura de Drácula, ao mesmo tempo refinada e monstruosa, representa o medo da invasão estrangeira, da sexualidade reprimida e da perda do controle racional sobre o mundo — temas latentes na sociedade do final do século XIX.

A personagem de Mina Harker também merece destaque: símbolo de inteligência, compaixão e resistência moral, ela ajuda a reverter a visão puramente passiva da mulher vitoriana. Em suas palavras:

“A mulher que luta ao lado dos homens tem direito ao seu lugar na história.”

Drácula é um romance fascinante não apenas por sua atmosfera sombria e sua figura central aterradora, mas também por seus subtextos sociais e psicológicos. Trata de temas como ciência contra superstição, o medo do Outro, sexualidade, moralidade e decadência, tudo envolto em uma prosa elegante e cheia de suspense.

Mais de um século após sua publicação, a obra continua a influenciar a literatura, o cinema e a cultura pop — e permanece assustadoramente atual. Leitura obrigatória para quem deseja compreender o poder do medo como forma de arte e metáfora cultural.

Fernando Abdo, escritor e editor-chefe da Academia Mineira de Escritores

Helena - Machado de Assis

“A alma da moça era como um lago tranquilo e modesto, mas em cuja profundeza não deixavam de se refletir as estrelas do céu.”

Publicada em 1876, Helena é uma obra da fase romântica de Machado de Assis, mas já antecipa traços da sua maturidade literária, marcada pela análise sutil de emoções, a crítica às convenções sociais e a ironia refinada. O romance trata de amor, identidade, classe social e honra, e tem como pano de fundo a elite carioca do século XIX.

A trama gira em torno de Helena, filha ilegítima do conselheiro Vale, reconhecida em testamento após a morte do pai e passa a viver com a família legítima na chácara do Andaraí. Ela precisa, então, conquistar seu lugar na casa, ao lado de Estácio, o filho legítimo do conselheiro, com quem desenvolverá uma relação delicada e complexa. Logo no início, o narrador expõe o conflito central com fina ironia:

“A sociedade perdoa tudo, menos a legitimidade do sentimento numa relação ilegítima.”

Helena se revela uma mulher inteligente, sensível e orgulhosa — qualidades que conquistam o afeto de todos, especialmente de Estácio. O romance, porém, não é apenas sobre o florescimento de um amor: ele tensiona as barreiras morais e sociais da época, explorando o conflito entre origem ilegítima e valores aristocráticos. Machado conduz a narrativa com sua costumeira elegância e cria passagens de forte lirismo, como quando descreve a presença silenciosa de Helena na nova casa:

“Helena parecia feita de silêncio. Caminhava como se não pisasse o chão.”

À medida que os sentimentos de Estácio se tornam mais evidentes, surge no leitor uma tensão moral: seria possível esse amor? A resposta vem em um desfecho trágico e revelador, marcado por um segredo guardado por Helena até o fim. Em um dos momentos mais densos do livro, ela afirma:

“O que importa não é a origem, mas a dignidade com que se vive.”

Esse pensamento resume não apenas o caráter da protagonista, mas a crítica que Machado dirige à sociedade de sua época, marcada pelo preconceito, hipocrisia e culto às aparências. Helena é uma obra de transição: entre o romantismo sentimental e o realismo psicológico que consagraria Machado de Assis. É um romance de sutilezas, onde os verdadeiros conflitos não se dão em grandes gestos, mas nos silêncios, olhares e tensões internas dos personagens.

A figura de Helena, enigmática e forte, representa uma mulher que desafia os limites impostos pela origem e pelo gênero, sem nunca prescindir da dignidade. O livro, com sua prosa refinada e enredo envolvente, permanece atual ao tratar de questões de pertencimento, identidade e exclusão.

Leitura indispensável para quem deseja compreender não apenas a evolução da literatura brasileira, mas também as raízes de nossas estruturas sociais e afetivas.

Fernando Abdo, escritor e editor-chefe da Academia Mineira de Escritores

A Revolução dos Bichos - George Orwell

“Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais que os outros.”

Com essa frase irônica e inquietante, George Orwell sintetiza o desfecho distorcido de uma utopia que prometia libertação, mas terminou em nova opressão. Publicado em 1945, A Revolução dos Bichos é uma poderosa fábula política que critica de forma alegórica os regimes totalitários, especialmente o stalinismo soviético.

A trama se passa na Granja do Solar, onde os animais, liderados pelos porcos, se rebelam contra o fazendeiro Sr. Jones, tomam o controle da fazenda e estabelecem um novo regime baseado na igualdade, no trabalho cooperativo e na abolição da exploração. A revolução começa com ideais elevados, inspirados pelo discurso visionário do porco Major, que afirma:

“Tudo o que anda sobre duas pernas é inimigo. Tudo o que anda sobre quatro pernas, ou tem asas, é amigo.”

No entanto, à medida que o tempo passa, os porcos — especialmente Napoleão, uma figura que representa Stalin — começam a concentrar poder e corromper os ideais da revolução. O que era um projeto coletivo degenera em uma ditadura brutal e hipócrita. As regras iniciais do “Animalismo” são manipuladas, como quando a máxima “Nenhum animal dormirá em camas” se transforma sorrateiramente em:

“Nenhum animal dormirá em camas com lençóis.”

Dos personagens mais simbólicos da narrativa, destaca-se Sansão, o cavalo trabalhador e ingênuo, cujo lema “Trabalharei mais ainda” representa a classe operária explorada. Sua lealdade cega ao regime, mesmo diante de injustiças evidentes, é comovente e trágica. Ao ser traído e enviado para o matadouro, enquanto os outros animais são enganados com a mentira de que ele estava sendo tratado no hospital, Orwell expõe com crueza a manipulação política e o abandono dos mais frágeis.

Um dos pontos mais chocantes da obra é como Orwell retrata a manipulação da informação. O porco Garganta, porta-voz do regime, reescreve constantemente os fatos para favorecer Napoleão. Os mandamentos originais da revolução vão sendo alterados aos poucos, e os animais, mesmo desconfiados, acabam se submetendo.

A linguagem simples e direta da obra contribui para seu impacto. Por ser uma fábula, o livro pode ser lido tanto por jovens quanto por adultos, mas sua crítica é sofisticada e carregada de ironia. George Orwell transforma uma simples fazenda em um palco de uma das críticas políticas mais afiadas do século XX. O livro é uma fábula satírica que denuncia como regimes totalitários distorcem ideais de liberdade para consolidar o poder e explorar os mais fracos.

Fernando Abdo, escritor e editor-chefe da Academia Mineira de Escritores

Encontro Marcado - Escritor Fernando Sabino

“O que é que vou ser quando crescer?”

Com essa pergunta, aparentemente simples, mas carregada de inquietação existencial, Fernando Sabino abre seu romance mais emblemático, Encontro Marcado (1956). Mais do que uma obra de formação, o livro é um mergulho profundo nos conflitos internos de uma geração e de um indivíduo que busca, acima de tudo, ser.

A narrativa acompanha a trajetória de Eduardo Marciano, desde sua juventude em Belo Horizonte até a vida adulta no Rio de Janeiro, revelando um personagem em constante questionamento sobre o sentido da vida, da arte, da religião e das convenções sociais. A história é, ao mesmo tempo, um retrato da juventude intelectual brasileira do século XX e uma confissão íntima das angústias universais do ser humano.

Eduardo vive dividido entre o desejo de liberdade e a culpa moral herdada de uma formação católica rígida. Ao lado de seus amigos Hugo e Mauro — figuras que representam outros caminhos possíveis — ele percorre uma jornada de experiências e desilusões. Em dado momento, o personagem reflete:

“Na verdade, eu nunca fui o que pensava ser. Nem o que os outros julgavam que eu era.”

Essa frase sintetiza bem a crise de identidade que permeia o livro. Eduardo está sempre em confronto com as expectativas externas e internas, tentando se encontrar numa realidade que parece sempre deslocada de seus anseios.

Ao longo da narrativa, Sabino constrói um estilo ágil, com toques autobiográficos e uma escrita lírica que ora beira a crônica, ora mergulha na filosofia existencial. O tom é frequentemente introspectivo e reflexivo, como nesta passagem:

“Tinha chegado à idade em que o homem começa a julgar-se culpado até por ter nascido.”

Apesar da densidade dos temas — como a morte, a fé, o amor e a busca por autenticidade — o romance não é pesado. Ao contrário, seu ritmo envolvente, sua linguagem acessível e seu humor sutil tornam a leitura fluida e cativante.

O “encontro marcado” do título é uma metáfora para o encontro consigo mesmo, com a verdade interior, ainda que ela seja desconfortável. É o momento em que Eduardo — e por extensão, o leitor — precisa encarar suas contradições mais íntimas. Num dos trechos mais fortes do livro, Sabino escreve:

“Tudo o que não é vida é literatura.”

Essa frase ecoa como um desafio àqueles que se escondem atrás de máscaras, papéis e discursos. A vida exige presença, e esse é o verdadeiro chamado do romance.

Encontro Marcado é um livro atemporal, que continua a dialogar com os dilemas da juventude e da maturidade. A prosa de Fernando Sabino instiga a olhar para dentro, a questionar nossas escolhas e a compreender que crescer é, muitas vezes, desaprender — para, enfim, viver com autenticidade.

É um clássico da literatura brasileira contemporânea, que permanece atual pela sua sinceridade emocional e pela coragem de desnudar os sentimentos humanos

Fernando Abdo, escritor e editor-chefe da Academia Mineira de Escritores

O Amor nos Tempos do Cólera  - Gabriel García Márquez

Falar sobre a grandeza da obra de Gabriel Garcia Marques é discorrer sobre o que já foi dito pelos melhores críticos literários do mundo. O Nobel de Literatura por Cem Anos de Solidão mereceu, e muito, todo o reconhecimento que recebeu em vida e que continua angariando, tendo sua obra recriada em filmes de cinema e séries televisivas. Do mais simples trabalho jornalístico aos grandes romances, Gabo sempre deixou sua marca inconfundível de criatividade e conhecimento das situações expostas e da alma humana, da mais simples à mais complexa. Seu realismo mágico coloca o leitor diante do que há de oculto na criatura humana, expondo com riqueza de detalhes o que o olhar comum não é capaz de ver.

Nesta resenha, quero destacar o seu livro mais tocante a meu ver. Segundo o autor, embora Cem Anos de Solidão tenha ganhado maior destaque, o seu favorito é O Amor nos tempos do Cólera, com o que eu concordo inteiramente. Em uma entrevista, Gabriel revelou que o romance tem como inspiração a história de seus pais, embora recheada de ficção. As personagens são de tal forma bem construídas que não há como não se comover com a tragédia que cada uma carrega por toda a narrativa, tanto no quesito da bondade quanto da maldade. O contexto de época, em que o Cólera determinou a vida ou a morte das criaturas, tem papel determinante, do princípio ao fim. Os protagonistas, Florentino Ariza e Fermina Daza, encarnam a essência do amor em todos a sua profundeza, ambos passam pelas reviravoltas que tal sentimento pode atingir, por todas as forças contrárias à sua realização, pelos inimagináveis rumos que a vida pode tomar, até que a perpetuação do anseio original se faça valer. É impossível não se comover com a persistência de Florentino e com o final que a vida reserva para ele e Fermina, resumido neste trecho:

"Florentino Ariza, por outro lado, não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem apelação depois de uns amores longos e contrariados, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias."

Recomendo a leitura desse fabuloso romance e de sua versão para as telas, protagonizada por Javier Barden e Giovanna Mezzogiorno, com participação especial de Fernanda Montenegro.

Nadja Abdo - escritora, critica literária, presidente da Academia Mineira de Escritores

Brasil Afora - Escritor Fernando Abdo

Em Brasil Afora, de Fernando Abdo, o leitor encontrará não somente contos em que a imensa territorialidade do Brasil se mostra diversa; também vai se deparar com as peculiaridades de seu povo, espalhado pelas cinco regiões. Cada conto, com seu contexto situacional, constitui uma narrativa permeada de singularidades locais e problemáticas específicas.  

A dimensão histórica aparece como pano de fundo, para explicar a miscigenação, os costumes diferenciados, o sincretismo religioso, bem como as desigualdades sócio-culturais. A colonização de exploração e os absurdos trezentos anos de escravidão dos negros não escapam ao múltiplo olhar do escritor. A ferida é exposta de forma subliminar, mas contundente, enquanto as tramas vêm carregadas de fortes elementos conotativos e, muitas vezes, denotativos.

A variedade dos enredos passa por perdas e ganhos em “Sorte Grande”, conflitos históricos do “Coronel Severo Gomes”, bairrismos como em “Resenha Grão Pará”, amores tocantes como o de   “Sinhazinha”, as aventuras audaciosas em “Serra Pelada” e muitas outras, indo desaguar no âmbito religioso de “Jangadas da Fé”.

O conto Santa Crença, em que amigas trocam cartas, por estarem distantes geograficamente, destaca-se entre os demais pela sua originalidade e dinâmica muito bem estruturada. Cria uma quebra de paradigma, fazendo com que o leitor se veja surpreendido e estimulado a prosseguir.  Com certo humor crítico, o autor expõe nas missivas as características divergentes das duas protagonistas, as alfinetadas sutis de ambas as partes, embora com cuidado para não melindrar uma amizade antiga.

No tocante à estrutura gramatical em geral, houve a feliz confluência da língua formal com os regionalismos, o que agregou veracidade e fluidez às construções textuais. Percebe-se, por todo a produção, a pesquisa feita pelo autor para dar vida e voz às criaturas, respeitando seus padrões e crenças, de forma totalmente legítima e  despreconceituosa. 

Brasil Afora não é só um livro de contos. Trata-se de uma obra literária que ultrapassa o entretenimento do leitor; leva-o a refletir sobre a mescla de sentimentos, conflitos e lutas enfrentadas por uma população multifacetada, aculturada, mas valente e resiliente. Um livro para ler com humanidade e respeito.

Nadja Abdo - escritora, critica literária, presidente da Academia Mineira de Escritores/ outubro 2023 

A Vida é Cruel, Ana Maria - Escritor Fabio de Melo

Em diálogos imaginários com sua mãe, Fábio de Melo revela-se capaz de criar um ato literário incomum, dado que conversa com uma personagem ausente, em clima de intimidade simultaneamente amorosa e reveladora. O que seria um monólogo ganha dinâmica de interlocução, na medida em que se denotam sentimentos ora compartilhados, ora percebidos. O nível discursivo em "A vida é cruel, Ana Maria" é de alto calibre literário, entremeado por construções poéticas tocantes. A leitura encantou-me e fez crescer a minha admiração pelo autor.

Nadja Abdo - escritora, critica literária, presidente da Academia Mineira de Escritores/ abril 2025 

Prefácio Memórias Editidas - Escritor Fernando Abdo

Em seus poemas em prosa, Fernando Abdo Mendonça adentra não apenas em suas memórias afetivas, tratadas de forma sublimada e amorosa; seu foco também se volta para contextos que lhe despertaram reflexões racionais, próprias de um olhar perscrutador. O discurso se distingue entre as situações intimistas e as universais, o que pode ser percebido pela inflexão nas abordagens, que se apresentam ora tênues, ora incisivas. Quando resgata cenários pueris, seu enfoque traz à cena todos os sentidos: a visão, o paladar, o tato, a audição, o olfato e os sentimentos advindos dessas sensações. Já em outros poemas, de contextos mais amplos e impessoais, sua visão torna-se mais aguda e crítica, por vezes sagaz e irônica. 

No tocante à linguagem, há muito o que se analisar. As frases curtas e impactantes definem bem o gênero do poema em prosa. Embora a predicação seja concisa, os verbos utilizados se destacam de tal forma em qualidade, a ponto de dispensarem maiores complementos, pela própria força que lhes é inerente. A sintaxe segue a estrutura profunda da língua, sem prolixidade, embora construída por um léxico   bastante aprimorado. O vocabulário tem riqueza em abundância. Os substantivos, por sua vez, ganham força pela extraordinária adjetivação que os acompanha. Em vários momentos, os adjetivos ganham status de substantivos próprios, sendo escritos com letra maiúscula para maior ênfase.   Outro aspecto linguístico - digno de nota no poema em prosa - é a utilização de figuras de linguagem como elipses, metáforas, personificações, aliteração e outras, muito bem aplicadas em vários trechos. 

“Talhados em colossos pilares, o intrépido monoteísmo em Nefertiti. Não obstante, o burlesco imprevisto nas serpentes Cleópatras.” 

Em todos os poemas, o estilo autoral se faz presente: ocorrem cortes rápidos, mas o ritmo e a harmonia não se perdem. A pontuação perfeita tem papel fundamental no sequenciamento. A excelência das pausas aplicadas desempenha função essencial para a interpretação e cadência. O corte de algumas preposições, no intuito de deixar o conteúdo mais poético que descritivo, não é tarefa fácil; exige do autor coragem e competência para desafiar regras linguísticas padronizadas, mas permissivas em termos de criatividade. São essas construções - bem aplicadas e conjugadas - que definem a pujança da obra literária, oferecendo ao leitor o diferencial esperado.

“Arranha-céus da cobiça em metonímias da pecúnia invisível; fortunas infactíveis em ternos imaculados exaurem em esbulho.”

Quando aborda suas impressões sobre as cidades que conheceu, nas inúmeras viagens que realizou, Fernando descortina aspectos que a muitos passam despercebidos. Seu olhar aguçado transita entre a geografia, história, política e demais características do lugar em foco. Ao desfrechar seu olhar inquisidor, faz uma varredura simultaneamente profunda e eloquente. No mesmo compasso em que situa o leitor, o autor faz a travessia do imperceptível, levando-o a perceber que está subjacente ao visível. Mais uma vez, a primorosa escolha dos adjetivos cumpre seu papel de qualificar o cenário de forma substantiva, positiva ou negativamente, para o interlocutor ausente.

No poema Amor Escorpião, Fernando enaltece sua musa, alma gêmea de mesma data natalícia. No desnudar dos sentimentos, a história do casal é contada com a mesma linguagem concisa, porém alinhavada pelo clamor da paixão. E é justamente a sua cara-metade que vem abrilhantar seu trabalho com belíssimas ilustrações, cuidadosamente elaboradas conforme a abordagem a que se remetem. O esmero e sensibilidade das aquarelas forma junção primorosa com os poemas. Essa confluência enriquece sobremaneira a obra, dando-lhe legitimidade e beleza, além de oferecer ao leitor mais um elemento de interlocução. 

Na sequência, os poemas Avus Mortem e Não Carece deixam claro o regate de memórias afetivas muito significativas para o autor. A delicadeza dos adjetivos que descrevem as personagens queridas mostra o quão caras lhe são as marcas que elas deixaram em sua vida. Ao citar Drummond, a escolha recai sobre a relação intrínseca entre falta e ausência. “Não há falta na ausência.”

  “A saudade segue intocada. Incompreendida. Sem hora para acabar. O avô   querido se foi, mas não deixou o  coração do neto-aprendiz.”

Todos os títulos dos poemas – incluindo o da própria obra como um todo – mostram muita correlação com o teor dos temas. As escolhas, bastante esmeradas, agregam grande valor à produção. É importante ressaltar que um título assertivo colabora como significante para a compreensão do significado. Ademais, quando a semântica estabelece, propositalmente, uma extensão de sentido, a curiosidade do leitor fica ainda mais aguçada. 

No decurso da leitura, a numeração em alguns termos específicos ocorreu certamente por necessidade de um esclarecimento de sua origem. O que seriam notas de rodapé foram inseridas em página única, no final do livro, enumeradas conforme a ordem em que constam nas páginas. A opção de colocá-las em bloco parece-me ser uma forma de não comprometer a estética de cada poema. Uma decisão sábia, levando-se em conta que se trata de uma composição literária e artística: o conteúdo tem conotação poética, mas não se exime de conhecimento; o bom gosto estético denota beleza, do início ao fim. Assim sendo, o valor da obra que tenho a honra de prefaciar exala virtudes em todos os aspectos, que se fazem imprescindíveis às mais depuradas produções. 

Nadja Abdo - escritora, critica literária, presidente da Academia Mineira de Escritores/ março 2022 

Memórias Postumas de Brás Cubas - Machado de Assis


Memórias Póstumas de Brás Cubas marca um divisor de águas na literatura brasileira. Publicado no final do século XIX, inaugura o realismo machadiano, rompendo com o romantismo idealizado da época. Com forte tom irônico, filosófico e crítico, Machado de Assis cria um narrador morto, Brás Cubas, que escreve suas memórias “da cova para cima”.

“Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.” (Prólogo)
Essa epígrafe mostra desde o início o humor negro e a irreverência do narrador, que, sem as amarras da moral social, pode contar sua vida com total franqueza — ainda que, muitas vezes, manipulada.

O livro narra a vida de Brás Cubas, membro da elite carioca do século XIX. Ele revisita sua infância, amores (especialmente Virgília), ambições políticas frustradas, vaidades e relações familiares. Porém, mais importante do que os fatos é como ele os interpreta, sempre com ironia e autocrítica. O enredo é não linear, dividido em 160 capítulos curtos, alguns de apenas uma linha.

Neste trecho, Machado esbanja sua habilidade ímpar com o uso dos adjetivos, e a maestria com as vírgulas. "Uniu-nos esse beijo único, — breve como a ocasião, ardente como o amor, prólogo de uma vida de delícias, de terrores, de remorsos, de prazeres que rematavam em dor, de aflições que desabrochavam em alegria, — uma hipocrisia paciente e sistemática, único freio de uma paixão sem freio, — vida de agitações, de cóleras, de desesperos e de ciúmes, que uma hora pagava à farta e de sobra; mas outra hora vinha e engolia aquela, como tudo mais, para deixar à tona as agitações e o resto, e o resto do resto, que é o fastio e a saciedade: tal foi o livro daquele prólogo." (Capitulo LIII)

Brás Cubas é egoísta, vaidoso, elitista e ocioso. Vive de aparências e nunca trabalhou. Não possui grandes realizações, mas se acha digno de escrever suas memórias. A morte lhe permite olhar com distanciamento para sua vida — e zombar dela. “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.” (Cap. CXXXVI – O Veredicto)
Essa frase, no final da obra, resume seu niilismo: Brás vê a existência como vazia e se orgulha de não ter perpetuado o sofrimento humano.

Conclusão crítica
Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra fundamental da literatura brasileira e universal. Machado de Assis, com sua escrita irônica, filosófica e engenhosa, antecipa técnicas do modernismo e até do pós-modernismo, tornando-se um autor à frente de seu tempo.

Brás Cubas é um espelho do vazio existencial, da vaidade social, e do desprezo pelas virtudes falsas. A genialidade do livro está em nos fazer rir da tragédia humana — com leveza, inteligência e acidez.

Fernando Abdo, escritor e editor-chefe da Academia Mineira de Escritores

A Criatura Humana - Nagib Abdo

Em A Criatura Humana, Nagib Abdo nos entrega uma obra que não apenas narra, mas mergulha de forma visceral na complexidade do ser humano. Com uma escrita densa, poética e precisa, o autor constrói um painel psicológico e existencial que nos obriga a confrontar nossas próprias zonas de sombra. Este não é um livro que se lê com leveza — é uma travessia.

O ponto mais notável da obra está em sua capacidade de expor, sem concessões, as contradições que moldam os indivíduos. Abdo não se contenta em descrever personagens; ele os disseca. Suas figuras não são arquétipos fáceis de rotular, mas sim criaturas marcadas por dúvidas, desejos inconfessáveis, impulsos irracionais e momentos de rara lucidez. A densidade psicológica desses personagens reflete um autor profundamente atento à alma humana, e isso se manifesta tanto nos diálogos carregados de subtexto quanto nas introspecções que beiram o filosófico.

A escrita de Nagib Abdo possui um ritmo que lembra o fluxo de consciência, mas com um controle narrativo impressionante. Ele conduz o leitor por labirintos emocionais e dilemas morais com a maestria de quem compreende que os seres humanos são feitos de camadas — e que nenhuma delas é totalmente confiável ou pura. É como se cada página ecoasse a pergunta: “O que nos faz realmente humanos?”

A complexidade comportamental que permeia A Criatura Humana é outro mérito notável. Abdo desenha com nitidez os contornos da ambiguidade — entre o certo e o errado, o impulso e a razão, o instinto e o autocontrole. Não há respostas fáceis aqui, e o autor tampouco as busca. Em vez disso, ele nos oferece espelhos trincados por onde vemos, fragmentados, os rostos das criaturas que somos.

Ao final, A Criatura Humana não se encerra em si mesma. Ela reverbera. É daqueles livros que continuam falando mesmo depois da última página, desafiando o leitor a olhar para si e para o outro com menos ingenuidade e mais profundidade. Nagib Abdo, com sua escrita rica e penetrante, reafirma a literatura como território privilegiado da inquietação humana.

Uma leitura essencial para quem busca mais do que histórias: para quem busca verdades cruas, mesmo que desconfortáveis.

Fernando Abdo, escritor e editor-chefe da Academia Mineira de Escritores

Maravilha de Memórias


Falemos das Memórias Editadas, obra de Fernando Abdo e, de modo especial, do Prefácio, de autoria de sua mãe, Nadja Neves Abdo.

Gostei do perfil que ela adotou das informações adjetivas, que se intrometem no berço das expressões substantivas e, gentilmente, abrem novos horizontes ao leitor dos poemas em prosa.

Poemas em prosa? Curiosamente, uma amiga fraterna, tendo estado na parte francesa do Canadá, lembrou-se de mim e adquiriu um ensaio de Baudelaire sobre o poema em prosa. Trabalho raro, saído do espírito criativo do grande poeta de versos medidos e rimados, na melhor tradição francesa.

Encantaram-me, nas epígrafes escolhidas para credenciar os conteúdos poemáticos, os autores e os trechos selecionados pelo organizador das memórias recolhidas.

Fernando Abdo abre espaços para o que há de melhor na Literatura Brasileira e se serve igualmente dos mestres do passado. Diríamos que percorre os fornecimentos do período clássico, principalmente daqueles da cultura greco-latina.

Há um sabor afirmativo quando as memórias cessam de ser tão somente prosaicas e invadem citações irônicas, destrutivas, ofertadas pelas mentes questionadoras das potências destinadas ao manejo do Poder. Poder ávido de mais poderes e dominações. O que desejam os bilionários? Desejam ficar mais ricos e poderosos.

O poeta das memórias exibe dois roteiros: no primeiro, estão os lugares do viajante, desde as luzes da aurora do mundo até os píncaros da capacidade humana. 

Tenho certa reserva para os que acreditam num Deus onipotente, que não se apresenta aos mortais. Os deuses são também uma criação do ser humano. Tudo o que ainda persiste, desde o sórdido ao maravilhoso, saiu da mente dos mais sábios dos homens da Ciência e da Eurística.

Tive uma tia, conhecida como Sinhá do Couto, uma doçura de pessoa que, bancando uma teóloga, dizia, ante as catástrofes da vida: “Eu não servia para ser Deus. Tenho o coração muito bom.” 

É de fazer o queixo cair iniciar a obra com o breve e insuperável trecho da prosadora e poetisa Clarice Lispector: “Como começar pelo início, se as coisas acontecem antes de acontecer?” Logo a seguir o poeta-historiador passa a palavra ao maior escritor de todos os tempos: “… as pessoas não morrem, ficam encantadas.” João Guimarães Rosa. 

Quem vem depois? Simplesmente o escritor-símbolo da nacionalidade brasileira, Machado de Assis: “Há uma grandeza, há uma glória, há uma intrepidez em ser simplesmente bons, sem aparato, nem interesse, nem cálculo; e sobretudo sem arrependimento.”

Tomemos, por exemplo, a bela senhora que assina o Prefácio. Sua beleza é dádiva da natureza que vem sendo aperfeiçoada desde tempos imemoriais. Ou seja: desde 260.000 anos-luz até este momento em que assino esta consideração. Tudo o que existe constitui produto da ação humana sobre a parte sólida do globo terrestre. A terrível e inestimável ação vem da cristalização de hábitos e costumes jogados no Rio da Vida. O cone vivo vira um simples simulacro que se despeja em outro Rio, mais volumoso. Até que este, em gesto suicida, se atira sobre o Mar-Oceano. Até que este, na vazante, deixa a descoberto a margem, sob a luz e os efeitos do sol, estrela de quinta posição na lista dos astros. Que vem a ser a Beleza?

O que se convencionou ser Belo, o prêmio mais alto da concepção humana. A Beleza substantivada, preste a desfilar no concurso mais disputado e consagrador ante a fabricação dos prazeres da vida. Sim. A vida tem que ser, sempre, prazerosa. Somente assim paga a pena dos desencantos e sofrimentos a que se sujeitam os “pecadores, devidamente citados nos tais livros ditados pela supremacia do pensamento cósmico, segundo o que a religião eternizou para os fiéis católicos.

Conclusão

Desejo mencionar a síntese das memórias reunidas por Fernando Abdo, sob o signo das maravilhas. Em primeiro lugar, a tentativa de resgatar as contribuições do saber humano a partir da escrita. Temos a trajetória do Autor sobre os resíduos das civilizações, algo que estas lograram implantar sobre o território urbano, em gestos sublimes de ocupar as cidades com as reminiscências legadas no deslocamento dos produtores agrícolas para os centros residuais. A palavra saudade, tão característica da Língua Portuguesa que se oficializou no Brasil, constitui símbolo inerente às formações poemáticas dos artistas e cientistas.

Um grupo de estudantes que assistiram às minhas preleções numa Universidade norte-americana, composto o grupo de professores, estudiosos, curiosos das expressões realizadas no planeta Terra, presenteou-me com a eleição da vanguarda pós-modernista, os poemas “visuais" que mais os enriqueceram. Os poemas da obra Jeremias sem chorar, do poeta Cassiano Ricardo, editado em São Paulo, foram os mais celebrados no inquérito que, de costume, proponho no final do curso.

Já desligado do magistério, fui visitado em Belo Horizonte por dois antigos alunos, os quais me alegraram com um estudo sobre a palavra saudade e, além disso, pequena pesquisa acerca do voo de Gagarin em torno da Terra.

Continuo: a psicanálise e o sentimento de bem-estar na vida se juntaram para revelarem novos recantos da alma.

Fernando Abdo traz aos leitores ilustrações de Karla Boncompagni e, no término do trabalho, uma lista de 42 anotações esclarecedoras dos textos dos poemas em prosa.

Tudo reunido representa especial convite para dimensionarmos a plenitude e os limites dos poemas em prosa. O saber enciclopédico advém, de qualquer forma, como um conforto a mais para o leitor-consulente.

Este é o testemunho que posso dar ao Autor do que nomeio “Maravilhas das Memórias”.

Fábio Lucas, escritor e crítico literário, sobre o livro Memórias Editadas. Publicado na revista da Academia de Letras do Brasil