Sobre as Incertezas

A memória, repleta de convicção emocional, por vezes fica dissociada da verdade. Há sempre certa ficção envolvida, por mais que se queira chegar aos fatos. Um tumulto de lembranças, fragmentos, tudo misturado… Incertezas. Contudo, algumas cenas se fazem tão marcantes e decisivas em determinado momento histórico, que delas se tem memória exata e recorrente.

O presente, sempre carregado de passado, oferece a sensação do déjà vu, tem fragrância assimilada. Já no futuro, novas lembranças terão lugar, mais lúcidas, menos perturbadoras. Afinal, já se terá alcançado certa experiência e lucidez para conviver com o que fincou lugar no coração. Assim, o tumulto de outrora vai ganhando certo sentido e juízo de valor.

A vida passa por vezes lenta, outra vezes como convulsão. Em certos momentos é água parada, em outros, mar bravio. Dessas alternâncias dependem as memórias, no sentido de serem mais ou menos representativas. Cabe ao timoneiro a sabedoria de conduzir seu barco em tempos de bem aventuranças e de incertezas, dando a cada época a sua significância, até que chegue a hora do aportar definitivo.

Nadja Abdo - Julho 2024

Escassez de Gênios

De tempos em tempos a genialidade tenta compensar o lugar-comum, mas tem medo de não surpreender ou, quem sabe, frustração de nada mais haver para além da banalidade. Ávidos por notoriedade, muitos buscam destaque, mesmo que momentâneo, mesmo que em arremedo: variação do mesmo tema. Vez por outra a filosofia ensaia, acalenta a espécie humana com simplória autoajuda; já a tecnologia anuncia maior expectativa de vida.

Enquanto o espírito sente fome, vai-se buscando a imortalidade; os sábios de hoje estão ocupados, querem eternizar o corpóreo sano, pretendem vencer a morte. Pelo sim pelo não, cobaias se apresentam ao ensaio: o temor do envelhecer cala alto, não querem ser gênios na memória, cobiçam apenas permanência.

Nadja Abdo - abril 2024

Afetividade e Eu

Nunca se falou tanto sobre equívocos nos relacionamentos afetivos e traumas decorrentes dos constantes desenlaces. Nunca se buscou tanto compreender as variáveis desses conflitos e apontar soluções. Na internet, a todo tempo, aparecem receitas infalíveis, velhos e sábios ditados são resgatados, postagens magníficas com chavões surgem em profusão, são criadas algumas mensagens até interessantes em conteúdo, os livros de autoajuda são recomendados e vendidos a rodo... Enfim, as tentativas de salvar as relações humanas desastrosas ou remediar o sofrimento causado por elas são várias.

Então, diante da crise detectada e da demanda por socorro, aparecem as indagações sobre o problema que se alastra: Por que as relações afetivas não prosperam ou duram como antes? Por que os sentimentos se tornaram tão efêmeros? O que fazer para não sofrer tanto com o rompimento? Por que alguns agem com violência numa separação?... E vão por aí afora as perguntas.

Falam os filósofos, analisam os psicólogos, aconselham os religiosos, receitam os doutores... Na dúvida, Freud é ressuscitado e chamado a explicar. Os antidepressivos e a psicoterapia são apontados como indispensáveis para dar solução ao problema. Mas as perguntas continuam sem resposta.

A angústia, o pânico, o estresse - ou todos somados - fazem mais e mais vítimas a cada dia, sem que a epidemia seja controlada. Vários males vão surgindo, decorrentes desse estado de coisas da vida contemporânea. À espreita, doenças psicossomáticas aproveitam a oportunidade para se instalarem.

Concomitantemente, pode ocorrer o estado de solidão, o que tem sido cada vez mais frequente, como consequência ou por opção. Refazer a vida afetiva nem sempre é fácil. O desgaste emocional de um relacionamento malfadado imputa certa descrença e colabora para o que o medo de uma nova frustração ocorra. Ademais, nunca se sai de um relacionamento sem marcas e bagagens, que, por vezes, podem dificultar um recomeço. Estar só pode ser uma garantia de viver em paz. No entanto, muitas pessoas conseguem superar e refazer sua vida afetiva, alcançando a tão sonhada felicidade.

Consideradas as características das relações afetivas da vida contemporânea, em geral, e seus desdobramentos na vida pessoal e familiar de cada um, o que se pode depreender dos fatos é que vivemos uma época de baixa tolerância e de egos exaltados. E o que fazer? A resposta é diretamente proporcional à necessidade que cada um tem de se relacionar, de se doar e de manter acesa a energia – seja ela amor, amizade, paixão, companheirismo - que sustenta o relacionamento.

Nadja Abdo - fevereiro 2024

O Tempo de um Ano

A sensação de que o tempo está passando mais depressa é inexplicável: parece não ser mais possível controlar a velocidade dos fatos e da vida, embora o relógio continue registrando as mesmas 24 horas de um dia, com seus ponteiros incorruptíveis.  No início do ano, isso não fica tão evidente, dá até para acreditar que há prazo suficiente para fazer tudo que está planejado. No entanto, à medida que se aproxima o final do ano, cresce a sensação do imponderável, do inevitável desfecho, a despeito da necessidade de mais horas, dias, meses.

Ao se constatar que mais um ano está encerrado, nada mais cabe, senão contabilizar ganhos e perdas. Surgem, então, as estratégias para maximizar vantagens alcançadas ou minimizar efeitos indesejáveis. Nessa hora, a maturidade é a grande aliada, é dela que se extraem forças para acreditar que foi feito o cabível a cada situação, não necessariamente o desejado.

Para o ano vindouro, promessas de mais sabedoria, vitalidade e melhor administração do tempo, e um desejo firme de que as luzes não se apaguem antes da hora. No entanto, é importante entender que os rumos da vida são traçados por uma infinidade de iniciativas – ou mesmo pela inércia – não se podendo fazer projeções advindas unicamente da nossa vontade. Algumas previsões são corretas e se efetivam, outras ficam ao sabor das vicissitudes, dos caprichos pessoais, do poder capital e de um sem número de variações.

O certo mesmo é que os anos se sucedem à revelia da vontade das criaturas, a vida não para de correr, o seu curso só tem de concreta a finitude. Aquele velho ditado de que “devemos viver como se não houvesse amanhã” tem seu fundamento, mas não significa que o tempo não nos pregará uma peça, deixando muita coisa em aberto, muita coisa inacabada e um gosto mais ou menos amargo de coisas perdidas... O certo é que o ego só existe enquanto o tempo lhe dá guarida. Para além de nós mesmos, tudo são incertezas.

Nadja Abdo - março 2022

Verdade Relativa

Os filmes hollywoodianos começam a dar sinais de rendição, mostrando que a ‘verdade’ ocidental não é a única. Os roteiristas americanos decidiram mostrar – mesmo que superficialmente – o outro lado da moeda do conflito ocidente x oriente, dando voz aos personagens árabes em seu contexto social, cultural e religioso. Uma espécie de mea-culpa moderada, motivada por um medo crescente da força islâmica, que tem resistido heroicamente ao poderio bélico dos EUA/Israel.

Entretanto, as películas produzidas em Hollywood ainda se empenham em mostrar o lado bonzinho e democrático do norte-americano, contrastando com a rigidez e autoritarismo dos povos orientais. Ora nas entrelinhas, ora de forma mais evidente, o contraponto é sempre registrado, especialmente quando o assunto é 'terrorismo'(como eles chamam as reações adversas), guerra do Iraque, armas nucleares, facções islâmicas etc. Os povos árabes sempre são mostrados de forma caricata e/ou marginalizada, enquanto os ocidentais são os modelos de moral e eternos benfeitores.

A consciência humanística do homem contemporâneo vem, há muito, sendo moldada pelos padrões norte-americanos, que determinam como bom o que é ocidental e mal o que é oriental. A construção dessa verdade relativa aconteceu de forma gradativa e gradual, com a desfaçatez própria da mídia de massa, de tal forma que hoje passou a ser verdade oficial, proibida por lei de ser questionada à luz da razão e da ciência.

Ao assistir a filmes do gênero – e ao ler livros também – devemos lançar um olhar muito cuidadoso e perspicaz, tendo em vista que a hegemonia norte-americana é massacrante e sua ideologia é repassada, usando técnicas de persuasão bastante estudadas. Falando grosso modo: eles vencem pela repetição. O roteirista/autor é sempre muito ardiloso ao tentar passar a sua ideia como sendo a única verdadeira, não concebendo outro olhar, de outro prisma. Não é sem motivo que os EUA são considerados os donos da mídia internacional, formadora de opinião.

Mas essa via de mão única começa a sofrer embates e dá sinais de exaustão. Uma visão diferenciada começa a aparecer nas telas (inclusive deles mesmos!!!), a exemplo do que aconteceu com os negros, antes marginalizados, agora mocinhos.

Nadja Abdo - janeiro 2021

Visita à Dama da Literatura

Aconteceu em São Paulo, 1997. Estávamos eu e o jornalista Rogério Santiago hospedados na casa do Professor Fábio Lucas - escritor e crítico literário. Dentre as muitas atividades culturais ocorridas, fomos visitar a grande dama da literatura brasileira, Lygia Fagundes Telles, em seu belíssimo apartamento, finamente decorado. O convite foi feito por intermédio do nosso anfitrião, grande amigo da escritora.

Passar a tarde na companhia de Lygia foi uma vivência mágica! Ela nos recebeu com a elegância e gentileza que só as almas nobres conhecem. Fez-nos sentir como seus iguais, tecendo elogios e respondendo às nossas indagações com um misto de sabedoria e bom humor.

Àquela época, ela estava envolvida com a tradução dos seus livros para o italiano. Presenteou-me com cinco de suas obras: Ciranda de Pedra, As Meninas, Seminário de Ratos, Mistérios e A noite escura mais eu. Todos autografados com extremo carinho; guardo-os como tesouros.

Do encontro ficou a forte lembrança de desfrutar da companhia e intimidade de uma mulher que sempre esteve à frente do seu tempo, marcando uma geração com seu talento, a ponto de tornar-se uma das mais importantes e atuantes acadêmicas da Academia Brasileira de Letras. Deixou para nós um exemplo de competência no que há de melhor na Literatura